Pé na estrada



Não quero entregar os fatos da minha vida a ninguém. Quero ficar com o que vivi. Domar os instantes na memória para não deixá-los escapar é mais penoso do que se imagina. Eu gastaria uma vida inteira para decifrar o que vivi apenas num instante. É sabido que minha fidelidade ao passado é corrosiva- estou sempre a ponto de explodir,  mas assim que se me apresenta o estopim eu fujo. Covardemente. Não existe melhor maestria que a de ser covarde. Pois ser um morto-vivo tem me dado dessas vantagens: quando menos espero, algo acontece, e eu fujo do acontecimento. Não tenho válvula emocional para lidar com certas circunstâncias... Preciso mesmo sumir para suportar. Jamais vesti a capa de heroi: a minha vida inteira foi um único sentimento de angústia que se estende até então. E que tempo vivo agora? Quero ficar com o que vivi. E sofrer milionésimas vezes pelos meus erros e pelas falhas dos outros na tentativa de perdoá-los e seguir em frente (assim que encontrar a direção).

Desfalque



Eu me atiro ao fogo... Sem pestanejar. Sou todo íngreme e minha impostação é de declínios. Nunca houve em mim transição qualquer e sim fases. Fatos. Medo absurdo de cair no vendaval daquilo que não sei domar porque sou fraco. E não sei lidar com a realidade. A minha solidão é quem me liberta: quero voar. Mas se não estou sozinho eu não sou eu mesmo, finjo absurdamente, rompo minha face para desnudar a carne. Eu sou uma máscara. Até para mim mesmo. Quanto mais seco o sangue mais o vejo escorrer. A morte é que nunca vem, caríssimo desconhecido, ela sempre esteve presente.

A esperança
E então eu a recuso.
Transbordo a dilaceração da alma para torná-la límpida novamente. Eu preciso sofrer. Incito de mim mesmo a negra ave que perpetua meu desejo e me esnoba, cospe em mim, pousa suas garras e me rasga sem piedade. Torno-me tristonho, mas intrépido. Jamais abaixo os olhos- eles já nasceram voltados para o chão.