Que é o amor?


El abrazo de amor del universo, Frida Kahlo

Se você diz que me ama,
Que irrompe os brandos ares para amar,
Que vela o mundo hostil,
Então não sou eu o símbolo.
Levitam-me as indagações.
A mim apenas olhares:
O menor gesto sutil já difunde o temor.
Neste amor não há lástimas.
Neste furor esverdeado não há nada;
Caules dobradiços, paredes sujas, velhos recortes,
A mente empoeirada pelo tempo e mais nada.
Se você diz que pode ser...
Então não é.
Porque o meu canto é bravo demais,
A minha voz é rouca e firme
E a música me persegue
e você não ouve
e eu me calo.

Destilando o meu veneno



Acusar, apontar e ofender é muito fácil. Por Deus! Não quero para mim esta limitação de quem apenas sabe o que é doce através do amargo dos outros. Ainda que me restasse a opção de não sair ao sol, de estar preso ao mundo abjeto, de ter apenas o meu corpo como alimento da alma... Ainda assim eu resistiria. Porque não sou eu quem está pelo fado, mas estou nele, entregue a ele, e vivo a cada segundo o peso do fado que, por fim, sequer é um fado. Enxergo-o como um aprendizado, brutal, mas uma lição. Há quem não possa lidar com isso sem machucar os outros. O fel que resta para mim é tão dolorido quanto ser sugado por um pernilongo, e se derrama sobre mim sem que me afete plenamente, pois sou duro como uma rocha (forte como um rochedo). De resto não me importo. Estou realmente pronto para qualquer adversidade que me afrontar sem pudor, do mesmo modo estarei eu, firme e renitente a ponto de jogar o mesmo jogo. Que jogo, porém? E sei eu? Mas estou pronto. Apresente-se a mim, dor do mundo, junte-se à minha chaga que está aberta e sangra e eu bebo deste sangue com prazer de vampiro que acaba de descobrir sua infinita sede.  O sadismo da minha dor equivale já, e finalmente, à minha morte. Pois que seja. Entrego-me eu ao que sequer conheço apenas para conhecer a paz que agora anseio como o sangue, que jamais ouvi falar, que vi na minha mente, que desenhei cuidadosamente e inventei com maior cautela para que fosse impossível desfazê-la e arrancá-la de mim. A paz mortificadora é minha. Em hipótese alguma poderá ser tirado de mim aquilo que eu mesmo inventei e, neste instante em que vivo a minha morte acabo de descobrir a magnificência de um corpo estranho, descubro também que inventei a mim mesmo.  E que eu sou o dono de mim. Ainda que me restasse a opção de ouvir todas as almas que me dizem o contrário, de me alimentar da solidão do espírito dos outros, de ser o próprio sacrifício... Ainda assim eu seria meu. 

 

Vidência


Porque me parece que sempre fujo para ti- e os meus sonhos me mostram os teus dias. A minha imagem, no canto do quarto, eu sei, resguarda esse teu romance. O teu riso parece contente, então eu não me preocupo. Apenas a ausência pode suprir a ânsia de liberdade que eu sinto no meu interior mais sofrido. Eu amo a ti e a mim mesmo. Posso te amar de longe, na distância do último beijo que se me deu. Eu ainda posso te amar? Mesmo que o quarto esteja cheio deste amor que eu vejo, desta foto preto e branco sem camisa com ele, da sua irmã e ele, das mãos dadas a ele. E quando eu abro os olhos não vejo nada. Não é a tua casa, nem a tua família, apenas o cheiro que tanto me agrada.
Resguardo todo o resto e rezo pela tua alegria (mesmo que não seja a minha).

Eu, mouro Narciso torto



Vinte nada.
As artimanhas que já me passaram
E estudei e enfrentei e soergui todas as coisas
E todas as vezes que mentiram para mim
Vinte não.
Muito mais.
Tombos e surras e tapas que já levei
E medos e aflições e vitórias
Cada derrocada de punho erguido eu venci
Nada de vinte.
Somam-se em mim muitas dores
Malocadas e rasteiras que a vida me deu
E saltos que eu dei para me salvar
As lesões ficaram
Mas conquistei muito mais do que me tentaram tirar
Vinte a mais
Uma infinidade de amigos, alguns amores,
Alegrias e decepções que me enrijeceram a raiz da alma
O trabalho e os livros e as festas e os eventos e as aulas
Vinte mesmo!
E talvez muito menos
Sabe-se lá qual a idade que me tem dado a vida
E os séculos que já vivi mundo afora
Todas as vidas que já tive em mãos
Agrupam-se num espaço-tempo incalculável
Parabéns a mim.
E aos vinte porvires que me sucederão esta mesma carne,
O mesmo furor e a mesma coragem que me sucederam estes vinte anos de agora.

Exaustão


Terei mesmo que me doar. Sacrificar-me à exaustão de me ser enquanto formigam os meus ossos a envergadura arrojada. Eu sou um único furor enlameado dentre as massas. Eu me venço. Não há horror algum que abale o medo já intrínseco e abundante nesta medula rachada. Hei de escoar a tosse que me sucede. Serei, então, consumido pelo fastio que brota das minhas entranhas e resvala mundo afora. Que há neste rumor? apenas verdades... 

Afogamento



É como se em mim não residisse outra coisa, embora o furor esverdeado do seu nome me persiga em pensamentos. O que fazer com esses olhos? As dores e as cores que desconheço todas nesse invólucro paraíso que me estilhaça ao chão enquanto eu chamo o seu nome. Não o busco- porém, suscito. Reverbero o pensamento para não atolar de ilusões o coração já cicatrizado. Eu não me obrigo ao toque, porque em verdade já existe a minha pequena, e eu sofro. Por que seria diferente? Resvalo pelo mundo afora apenas durante o tempo que dura o seu sono intermitente. O sonho entrecortado pelos laços de realidade que não são eu. O mundo inteiro sou eu. Mas para o seu condado mítico o que resta é pueril demais, banal demais para inexistir: a vida é um fado que me resseca enquanto eu transbordo.